Confira o texto completo do Cordel “O Telhado de Dentro”, por Bartolomeu Nascimento.
1) Se olhar um pouco mais Pros telhados lá da roça, Eu digo: Na parte de dentro, Tem de tudo que se possa: Panela, foice, alicate, A caça que se abate, Hortelã da folha grossa.
Nem dá pra imaginar O tudo que existia. No telhado de uma casa, Como é que se conseguia A dispensa de Biu matuto Pobre, mas muito astuto Eram as telhas em que vivia.
Nos caibros pretos de tirna, Por entre as telhas quebrada A casca seca da laranja, Que foi debaixo jogada. Bem pertim da cumeeira Onde escorre uma goteira Que deixa a casa molhada.
2) E um pouco mais à direita O arame enferrujado Que pendura com orgulho A gaiola do golado, Que cantou o dia inteiro E encheu todo terreiro De um som abençoado.
A corda de amarrar rede Com a rede amarrada Documentos importantes Na sacola plastificada O espelho, o pente fino Até brinquedo de menino Botado ali sem escada
Abanador de palha, Um pacote de bombril, Um saco de pegador, Uma lamparina e um funil, Bucha pra tomar banho, Agulha de todo tamanho, Pra beber água um cantil.
3) Um vistoso rapa coco, Um tubim de violeta, Era tudo bem guardado, Como que guarda em gaveta. Meia barra de sabão, Um pacote de algodão, Graxa de sapato preta.
Borrifador de veneno Pra matar muriçoca, Escova de lavar roupa, Uma espingarda de soca, E uma pequena economia Muito bem enroladinha Escondida em uma loca.
Chibata prá dá no boi, Cabaça de beber água, Quenga brilhosa de coco, Carne seca amarrada, Cebola e alho em réstia, Calçado de ir pra festa, Um tubo mei de pomada.
4) Um coador de café Pendurado na cozinha Acima do fogareiro Entre as telhas bem pretinha. Tinha umas telhas afastada Que deixava amostrada As telhas da casa vizinha
Pólvora dentro de chifre Um pedaço de cortiça; Enrolada num papel, Se guardava a dobradiça, Sabonete, barbeador Que o cabra ali guardou Pra ajeitar a barbicha.
Uma colher de pedreiro, Um bonito par de esporta, Duas varas de pescar Que veio pra dentro de fora; Um lâmina de gilete E um bocado de cachete Pra dor do espinhaço ir embora.
5) Para calço de goteira Fita cassete velha, Frasco de leite rosa, O resto duma chinela, Pedaço de isopor, Vidro de qualquer cor, Até Raiovac amarela.
Tinha mais calços ainda, Caneta, papel de cocada, Bobe quebrado no mei, Caixa de fósforo dobrada Pra na hora da chuva bruta, A casa ficar enxuta E nunca ficar molhada.
Se usava também como calço Tubo de cola tenaz, Embalagem de lâmpada osram, Isqueiro quebrado e sem gás. Tábua, pedaço de pedra, Tudo pra evitar a queda Da água que a chuva traz.
6) O cabra assiste esse filme Deitado em cima da cama. Dá pra se ver cada coisa, Tinha até umas taturana De fogo preta e amarela, Aí se danava a chinela E ficava somente a lama.
Apesar de tão igual Era um telhado diferente Pois este telhado não tinha O que acaba com gente Ali não tinha cachaça Nem fazedor de fumaça Que mata bem paciente
Muito mais que um telhado, Aquela casinha já via A paz que um lar precisa. Seja de noite ou de dia, Pois o milagre que chegou Não foi ali a passeio, Foi sim fazer moradia
7) Eu vou descer do telhado E contar toda história Daquela família humilde Que neste telhado mora. Era um povo massacrado Que teve tudo transformado Mudado do dia pra hora.
O dono desta casinha Era Biu o Severino Morava praquelas bandas Desde que era menino Nunca frequentou escola Também nunca jogou bola, Trabalhar foi seu destino.
Com quinze anos de idade, Engraçou-se com uma moça E depois de um ano meio, O amor ganhou mais força Era tanta da alegria Beijo vinha beijo ia Casou-se o moço e a moça
8) Com o passar de algum tempo, Biu foi se modificando, Chegada em casa bem tarde Sem dizer que tava chegando. Maria Rosa muito sofria E o amor que ela tinha Tava aos poucos se esfriando
Foi crescendo a família, E aumentando o sofrimento Pra mulher e os cinco filhos. Todo dia era um tormento Pois tudo que Biu ganhava Na bodega ele deixava Já faltava o alimento
Aquela família humilde Que começou com tanto amor Tava sendo arrasada Pelo mal destruidor; A maldita da cachaça Por onde este inferno passa Deixa tudo sem valor
9) Maria Rosa desenganada Decidida de ir embora Juntou os cinco menino E as roupas numa sacola. Cansada de tanto apanhar E de ver nada mudar Pôs a vida estrada afora
Quando Biu chegou em casa Com um ar de valentão, “Muié bota minha janta” Foi aquele vozerão, A segunda fala mais calada “Cadê tu abestalhada Eu não to brincando não!”
Eita noite aperriada! Biu não sabia aonde ir Passou a noite acordado Até o dia surgir. E ninguém dava notícia De sua Maria Rosa Que tanto lhe fez sorrir
10) Aí sim, Biu percebeu O que estava ocorrendo E todo aquele acontecido Ele só tava colhendo; Foi o que tinha plantado E o fruto desse roçado Ele agora tava sofrendo
Do outro lado sua Maria Também não estava bem, Os meninos com saudade “Mainha, quando pai vem?” Que por mais irresponsável, Pra uma criança é agradável O abraço do pai que tem.
Assim tava a família Todinha despedaçada. Sofria com tudo junto, Sofria também separada E a noite sem companhia Tornou-se noite sombria Pros pais e pra filharada
11) Então Biu decidiu Mudar a vida de rumo E disse dentro de si: “Eu agora me aprumo” Foi falar com seu Vicente, Era um violeiro crente Ex amigo de consumo
“Meu amigo seu Vicente, Me explique bem direitinho Como foi que o sinhô Endireitou o seu caminho, Pois o meu tá atrapaiado, E se não for miorado Vou morrer logo cedinho.”
Vicente desconfiado Olhou sério e disse: “Biu, Eu sou homem de respeito. Onde foi que já se viu Vir zombar de um amigo, Tá sem medo do perigo Teu castigo num serviu?”
12) “Meu grande amigo Vicente, Por favor não leve a mal. Bebi tanta da cachaça E agi feito um animal. Hoje tô me lamentando, Vejo tudo se acabando, O que eu faço afinal?”
“Se tu quer mermo mudança Na tua vida pra sempre, Se entrega Biu, pra Jesus Deixa de ser imponente. Vem sofrer a zombaria E gozar da alegria Que tem na vida de um crente”
“Vou te levar pro pastor Pra vocês dois conversar. E hoje a noite no culto, Vou guardar o seu lugar. Escute tudo calado Na hora que for chamado Se levante e vá lá”
13) Agora se um amigo Te chamar pra beber Diga: tenho um compromisso Que eu não posso perder, Pois o diabo é danado E vai correr pra todo lado Pra tu não se converter
Biu logo cedo arrumou-se Nem mesmo quis o jantar. Chegou antes de Vicente E guardou o seu lugar. E quando o pastor falou: Quer Jesus por Salvador? Biu levantou-se e foi lá.
Era tanta da alegria Pra dentro de uma igreja Uma conversão por ano Era um ano de peleja. E pra quem conhecia Biu Sabe o milagre que viu Na igreja sertaneja.
14) Biu chegou em casa Com coração chei de alegria, Orando com muita fé Disse: Deus, minha familia O que é que eu devo fazer Pra o senhor converter Meus cinco filho e Maria?
Biu esperou alguns dias Orientado pelo pastor. Aprendeu sobre oração, Bíblia sagrada e louvor. Mas seu coração insistia Pedindo a Deus por Maria, Bonita como uma flor.
Chegou a hora de Biu, Foi um dia diferente Procurou Maria Rosa Que também já era crente, Já tinha se convertido Fazia uns quatro domingo No dia que Biu foi crente.
15) Consertou-se uma família Pelo poder de Deus Todo mundo admirou-se Pelo que aconteceu A família destruída Foi por Deus reconstruída, Rosa e Biu se converteu.
Debaixo daquele telhado Tudo tava mudado Por isso aquelas telhas É sem cachaça ou fumo brabo Mas tinha um rádio de pilha Que unia a família Num momento abençoado
O radinho sintonizava A voz do cantador Alegrando aquela casa Na hora do sol se pôr E isso toda tardinha Num tamburete da cozinha Se escutava o louvor
16) Era um tal de Sal da Terra Com uma cantiga aboiada, Uns profetas sertanejos, Uma viola chorada, E a casa de Biu e Rosa, Escutando em verso e prosa A santa Bíblia Sagrada
Eita telhado vistoso De tudo era bem sortido E se você sentiu falta de algo Pendura pra mim meu amigo É o armário da minha terra Nas casas do pé-da-serra De telhado bem exibido.